Duas noites e três dias com calafrios, dores nos ossos como se fosse febre que escapa do termômetro. Retornara há três dias da celebração do Natal em Paris, uma viagem colorida que ficou preta e branca na noite do dia 25 em que, na entrada do Ópera da Bastilha, fora informada que o espetáculo Dom Quixote não aconteceria, pois boa parte do corpo de baile da companhia de ballet do Opera de Paris estava contaminada com COVID-19.
Tinha partido de Amsterdam de ônibus e retornou de trem para evitar as trezentas e sessenta e sete etapas de um voo. De volta para casa, o ano novo não parecia nada promissor, dipirona e pastilha para a tosse. Autoteste não acusara COVID-19, mas cinco dias depois, já mais aliviada dos sintomas, se submeteu ao exame PCR que confirmou a presença do vírus. Caçaram sua carteirinha de invencível ao vírus que continuava devastando o mundo em dois anos de pandemia mundial.
Não trocava mensagens com sua mãe e seus irmãos desde o dia 26, tinha compartilhado as fotos da França e sua preocupação com os amigos que testaram positivo no início daquela semana. Não parava de pensar, mas não podia ligar na noite de réveillon e dizer que estava convalescente na cama, isso a preocuparia. Também não iria mentir que estava bem.
Teve uma noite de réveillon conturbada, protegendo as gatas – sem muito sucesso, dos distúrbios sonoros causados pelos rojões e fogos de artifícios. Em quarentena na sua própria casa, usando máscara, montando quebra-cabeça, decidiu que trabalharia de casa no ritmo que fosse possível.
Lembrou que era aniversário da sua avó e que, naquele mesmo dia, há doze anos, morrera sua tia favorita. Uma coincidência que assombrava a sua família: a morte frequentemente escolhia acontecer nas datas de celebração do nascimento de alguém; fora assim na última despedida, que acontecera no início de novembro, aniversário de meu padrinho.
Às dez da manhã a notícia mais apavorante chegava por telefonema de seu irmão: dona mãe hospitalizada por COVID-19, depois de passar dias com febre em casa e dificuldade para respirar. Prognóstico ruim, prioridade máxima para um leito de UTI monitorada. Do lado da linha, a impossibilidade de poder subir no avião para São Paulo sem o teste negativo para esta mesma doença.
O medo irradiava o corpo o deixando em desespero, os pelos arrepiados, a cabeça doendo, o estômago enjoado. Ela está com dor? Ela está com medo? Como atravessar este vale assombrado sem o contato físico com os irmãos? No computador a página inicial da companhia aérea, um “já vou, mãe” que não poderia acontecer. Não conseguia focar em absolutamente nada, a expressão dos olhos era de choque acompanhada do choro de uma filha assustada, tomada pelo medo.
Na manhã seguinte, a pedido do médico, fez ligação em vídeo na companhia dos irmãos para tranquilizá-la de que a intubação era necessária para o tratamento, que seria por um período e que no tempo necessário, estaria desperta. Dias depois, os estudos concluíram que ela testou negativo para COVID-19 e positivo para H3N2.
Dez dias se passaram daquela chamada no WhatsApp em que vira dona mãe vestida em roupa de hospital, não sabe o que fazer e sente um monte de coisas: ouve as músicas preferidas dela, coleta áudio de amigas e familiares para a equipe de psicologia tocar enquanto ela está sedada.
A distância geográfica perturba, o trajeto que pode levar pelo menos 24 horas, faz correr um líquido gelado na espinha quando admite para si mesma, a possibilidade de não estar lá na cerimônia de despedida. Ao longo das semanas acompanhou a evolução do quadro, esteve diariamente em contato com os seus, chorando de medo, rindo de alívio, celebrando os acertos da equipe médica e agoniados com as incertezas. Não há o que se possa fazer, as decisões do rumo do tratamento cabem aos profissionais da saúde.
Lembra de quando criança, aos dez anos, a única a subir na montanha russa na ânsia de experimentar o que os irmãos assistiriam do chão. Presa naquele carrinho que subiria dezenas de metros e despencaria a centenas de quilômetros por hora, em cada topo, pedia secretamente que parassem aquele brinquedo e encerrassem a atividade mais rápido possível.
O exame negativo ainda não veio e a viagem não é certa depois disso. Tem vergonha de admitir que, durante a espera, se sente mais amparada do outro lado do oceano, com seu companheiro e as gatas, fazendo o seu trabalho e rodeada das suas coisas. Sente culpa por não estar geograficamente perto, mas como manejar a ansiedade longe de casa?